UNILA conta com representantes de 28 povos indígenas em seu corpo estudantil
Os Ticunas, oriundos da tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, são o grupo indígena de maior número na Universidade localizada em Foz do Iguaçu
Dois anos atrás, Walkênia Mendes deixou sua comunidade em Tabatinga (AM) no extremo Norte do país, para perseguir um sonho: estudar em uma universidade pública e gratuita. Conhecida na comunidade indígena Umariaçu II como Mepü’üna rü Mutchimü’ūna, ela viajou quase 4 mil km para iniciar Serviço Social na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), curso que na região onde mora, na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, só é ofertado por universidades particulares e à distância. A história de Walkênia é semelhante a de outros 114 indígenas do povo Ticuna que hoje são acadêmicos em diversos cursos de graduação na UNILA. Os Ticunas, considerados o mais numeroso povo indígena da Amazônia brasileira, são também o grupo indígena de maior número na UNILA. Atualmente, a Universidade localizada em Foz do Iguaçu (PR), tem representantes de 28 povos indígenas, de 8 nacionalidades, em seu corpo estudantil.
A principal porta de entrada para o ingresso desses alunos é o Processo Seletivo Indígena (PSIN). Embora existam outras seleções voltadas para indígenas no Brasil, na UNILA existe um diferencial. Para concorrer a uma vaga, os candidatos não precisam se deslocar para fazer provas ou vestibular. A seleção é totalmente desvinculada das outras formas de ingresso de estudantes, além de ser 100% online e feita com base nas notas do Ensino Médio, valorizando os saberes e práticas das escolas indígenas.
Com o PSIN, a UNILA mais que dobrou o quantitativo de estudantes indígenas. Atualmente, a instituição conta com 153 alunos que ingressaram por essa seleção, que foi implantada em 2019. “Antes do PSIN o número de estudantes autodeclarados indígenas era muito menor e, os que aqui estavam em sua grande maioria já possuíam alguma familiaridade com as práticas sociais de organização de uma Universidade tradicional. Além disso, o ingresso de estudantes residentes em aldeias ou em localidades de difícil acesso tornava praticamente impossível o acesso. Hoje a UNILA conseguiu desenvolver um sistema que possibilitou o acesso de indígenas que de outra forma jamais conseguiriam chegar até nós”, ressalta Patrícia Queiroz, integrante da Comissão de Acesso e Permanência dos Povos Indígenas da UNILA (CAPPI).
Esse diferencial, permite o ingresso de indígenas de comunidades distantes geograficamente da UNILA, tanto do Brasil como de outros países da América Latina e do Caribe. Embora os Ticunas estejam em maior quantidade, há representantes de grupos indígenas como Guaranis, Nasa, Kichwa, Kuikuro, Atikum-Umã, Borari, Kaingang, Kokama, Pankará, entre outros.
Yanderi Josefina Fernandez Hernandez, ingressante da primeira turma do PSIN, é a única estudante da UNILA pertencente ao povo Wayuu, grupo que habita no departamento de La Guajira, na Colômbia, e no estado de Zulia, na Venezuela. Assim como sua parente do povo Ticuna, Yanderi também procurou a UNILA por não ter acesso à educação superior em sua localidade de origem, a comunidade Isijpu dentro do Parque Nacional Serrania de la Makuira, na Colômbia. E Yanderi enxerga o ensino superior como uma oportunidade para contribuir com o futuro desenvolvimento e bem-estar das comunidades indígenas. “Na Alta Guajira, uma região semiárida, existem desafios significativos relacionados ao acesso à água, desafios que são agravados pelos efeitos das mudanças climáticas. Essa realidade me motivou a buscar uma educação que me permitisse adquirir conhecimentos e habilidades para abordar esses problemas ambientais e contribuir para possíveis soluções no futuro”, salientou a graduanda em Relações Internacionais e Integração.
A integração como experiência cotidiana
Mas desenvolver um processo seletivo que permita o acesso de indígenas de diferentes localidades não é suficiente para garantir a permanência desses estudantes na Universidade. Por isso, a UNILA criou programas de monitoria especializados para indígenas e também para estudantes refugiados e portadores de visto humanitário. Atualmente, são 20 bolsistas que atuam em três frentes de trabalho – Letramento acadêmico e Inclusão Digital; Bilinguismo e Matemática Básica. Além disso, existem esforços de docentes e das coordenações de cursos de entenderem as dificuldades desses estudantes e desenvolverem ações.
Nos cursos de Engenharia, os professores já identificaram os desafios enfrentados pelos estudantes indígenas para se adaptarem às abordagens tradicionais das disciplinas, que demandam extensas horas de estudo, cálculos e repetição. Os docentes vêm se reunindo para discutir formas de adaptar as matérias e garantir que os estudantes indígenas absorvam os conteúdos necessários para obter um diploma universitário. “Sabemos a importância de que os povos originários possam ser os sujeitos históricos da construção tecnológica das comunidades, tanto em infraestrutura, energia, como outras engenharias que eles necessitam dominar. E, nesse sentido, estamos preocupados em dar uma formação de qualidade para que eles possam tomar as decisões sobre geração de energia limpa, descarbonização da economia e novas formas de produção em suas comunidades”, disse o professor Ricardo Hartmann, do curso de Engenharia de Energia.
O desafio de acolher saberes tradicionais na Universidade
Por outro lado a UNILA tem o desafio adicional de pensar formas de acolher, dialogar e incluir os conhecimentos e saberes tradicionais trazidos por esse grupo de estudantes indígenas. Pesquisador da História das sociedades indígenas, Clovis Brighenti diz que, mesmo universidades que recebem alunos indígenas há mais tempo, ainda debatem formas de incluir os saberes tradicionais na estrutura universitária. “A UNILA é privilegiada porque tem na sua constituição a dimensão da interculturalidade como elemento básico, incluindo a valorização dos conhecimentos dos povos. Mas acho que o grande desafio que está posto para a Universidade nesse momento é como garantir que esses princípios se transformem em políticas na instituição”, observou o docente.
Apesar dos desafios que ainda persistem, quem percorre as unidades da UNILA já pode notar que as primeiras turmas de estudantes indígenas estão deixando suas marcas na Universidade. Hoje são 282 estudantes indígenas ativos, incluindo aqueles que ingressaram através do PSIN, Seleção Internacional e SISU. Esse grupo já fundou um coletivo para sua representação política, criou uma Atlética Indígena, promove eventos e tem diversos projetos planejados para o futuro, tanto dentro quanto fora da universidade. Sua presença transforma diariamente a Universidade, na mesma proporção que a Universidade transforma sua trajetória de vida.